quarta-feira, 27 de abril de 2011

“Revistando as Raízes I”, resposta da carta da mãe - número 1

Admiro imenso a sua alma militar, que nunca aceita ser vencida pela velhice, neste momente que te atenta para imobilizar-te. A tua determinação pela vida me faz viajar numa profunda reflexão sobre a minha personalidade!
A tua mente continua mais fresca que as de muitos jovens amadurecidos pelo envelhecimento precoce: álcool, nicotina, drogas pesadas neste mundo urbano em que tudo virou disputa pela sobrevivência.

Aqui na cidade as pessoas movem-se de um lado para o outro, entre temer a chegada do dia que sempre adia a sorte de achar qualquer coisa escondida algures que nem vossos tintlholos conseguem desvendar. O emprego virou diamante; a pobreza e o lixo tornaram-se abundantes mais que os próprios munícipes; a água escasseia-se e a qualidade de energia é uma autêntica mira para quem, mensalmente é obrigado a pagar a mesma factura; os impostos então, isso sim, aqui e acolá ouvem-se vozes vestidos de supremacia de colecta-los, me parece ser uma das guerras que o governo consegue ganhar para além da corrupção e nepotismo em que o povo vai perdendo sempre na tal pobreza!!!...

Fico feliz em saber que as coisas gatinham na nossa magna povoação e em particular nessa toca que me delira de saudades da minha adolescência. Muito bem me lembro daqueles velhos tempos em que tinha que sentar no meio de gente idosa, seguir o contorno das palavras...e traçar um discurso para alimentar as mentes dos que nem ler e escrever sabiam. As vezes as cartas eram de amor, tréguas, tristezas... Tinha que antes mergulhar na leitura silênciosa, encarnar a situação e erguer a voz para quebrar o silêncio vezes explodindo lágrimas ou sorriso. Lembro-me de um dia, depoís de violar o envelope, encontrei uma foto com uma cruz, por sinal era da pessoa que se pensava que tivesse sido ela a enviar a carta para os pais. Fiquei electrizado de medo, chamei a consciência ao serviço da coragem e consegui fingir que estava tudo bem sem antes passar a foto aos familiares. Enquanto mergulhava silenciosamente no conteúdo da carta, já no segundo parágrafo a consciência trai-me e deixei escorrer as lágrimas e logo interrompi a leitura para dar lugar aos gritos tentando balbuciar algumas palavras para os familiares... Imagina com aquela idade, mãe!!!

Mãe, parabéns pelo avanço na tentativa de resolver o problema do poço. Apenas algumas inquietações: será que assim está tudo resolvido ou falta dar outro passo? Qual foi a contribuição dos outros beneficiários?

Muito obrigado, por saber que mesmo dentro das nossas dificuldades financeiras conseguimos encher a mãe de orgulho, isso, particularmente para mim, me faz delirar de prazer. Na verdade sinto muito a tua falta, mãe! Ohhh, que bom que o abacaxi mostra sinais de progresso. Na verdade isso é mais para garantir o sustento da mãe.
O meu tempo é escasso, tenho mesmo que terminar a carta por aqui. Sei que ainda há muitos assuntos por se discutir, prometo que um dia a gente volte a ribalta. Fica bem!

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Revistando as raízes I - Resposta I

Querido Filho,

Muito obrigada, por ter recebido a tua carta. Penso que é uma boa iniciativa, já que o meu celular anda com problemas de bateria, como pudeste testemunhar. Filho, em nenhum momento as tuas cartas constituirão incomodo. Sabes que essa foi sempre a nossa prática, escrever cartas e esperar meses e meses para a carta chegar e obter a resposta. Foi atravês de cartas que comecei a comunicar-me com o teu pai, muito antes de o conhecer pessoalmente. Naquela altura, para nós que vivemos no campo, a carta era o único meio de comunicação com os demais familiares e amigos que se encontravam distante. Eu sei que tu sabes muito bem disso que estou falando. Tu próprio ajudavas algumas famílias na povoação a ler, traduzir e escrever cartas para seus familiares, lembras-te?...

As culturas estão saudáveis. Nesta época a chuva está brincando no chão. Como viste, o amendoím e o milho tem suficiente para servir de semente e de algum excedente até a outra época. O homem da tracção animal veio lavrar àquela parte que te falei, agora estou nos preparativos de sacudir o campím para que logo consiga lançar o amendoím, milho e estacas de mandioqueira. O teu abacaxi está saudável, penso que foi um bom investimento, filho, parabéns. O teu irmão Xidumo mandou algum dinheirinho para reforçar o pagamento das pessoas que têm me ajudado na machamba. Estou muito orgulhosa por vocês, filhos! Continuem assim, que sempre terão sorte por toda a vida!

Quanto à questão daquele assunto do curandeiro, ele veio. Foi uma grande dores de cabeça para reunir as pessoas, porque muitas delas já tinham desanimado do projecto do poço. Mas com um pouco de esforço foi possível convence-las. Procurou-se consultar tintlholo numa senhora vizinha. Inicialmente simulou uma negação de ajuda, mas graças a um ancião...convenceu a ela a estender-nos a mão.
E a questão que foi encontrada foi da tua madrasta, que com outra senhora que vive na outra povoação...tiraram areia do poço. E com a sua magia foram fazer tratamento para bloqueiar o processo de saída de água. Isso tudo foi em pleno dia, filho. Que coragem! Os tintlholos acrescentaram ainda que a tua madrasta está com inveja de mim, porque todos vocês trabalham e tentam oferecer-me uma boa vida! Eu não entendo porque as pessoas têm tanto ódio assim! Aquele poço não só é para o meu benefício, como também o é para outros membros da nossa povoação, sobretudo a vizinhança.
Foi uma tarde de muita agitação. Com essa minha idade em que o corpo começa a recentir-se da velhice, com muitas coisas juntas só para a minha cabeça, morro de incertezas de poder ter oferecido melhor vida para os meus filhos. Mas em fim, a vida é sempre esse constante equacionador de hipóteses que só são respondidas quando a própria vontade de viver falar bem alto...

Filho, por hoje é tudo. Continuo na expectativa de receber mais cartas tuas, elas me consolam como se tu estivesses ao meu lado, lembrando-me aqueles anos da tua infância que andavas no meu colo, gritando, pulando...

Da tua mãe,
Cailora Fainda